(Mais uma vez este que vos mal escreve deu sinais de que estava próximo do chamamento blogal, deixando-vos assim a observar fragatas. Todavia, não foi por problemas técnicos, mas ausência de computador mesmo. Deve-se ao fato de que este autor estava em viagem importantíssima de cunho exclusivamente deleitoso no maravilhoso estado do Rio Grande do Norte, mais especificamente em Natal. De certa forma, como diria Chico - amigo meu, por isso chamo só de "Chico" - "se eu demorar uns meses, é bom, às vezes, você sofrer". Como voltei antes do período de um ano, continuaremos nossa saga, pedindo novamente as escusas a nossos digníssimos autores e excelentíssmos leitores. Isto posto, vamos aos capítulos em atraso: o oitavo (escrito pelo Benedito), o nono (escrito pela Helga Lützoff Bevilacqua) e o décimo (do Caio Miranda).
Capítulo VIII
A Prisão Pintada de Azul
Enquanto os minutos se engrandeciam na espera de alguém abrir a porta, meus olhos investigavam em volta e tentavam se perder da expectativa e da ansiedade que latejavam. Estavam para além do meu corpo.
A varanda, ampla e florida, parecia contornar a casa toda, como condição de segurança à felicidade que aparentava, de proteção contra qualquer infortúnio . Poderia se dizer que eu seria um deles? Alguém a colocar em risco a tranqüilidade de suas flores multicoloridas?
Violetas, muito mais as azuis, tornavam-me indiferente sobre as demais. Multiplicavam-se realmente ou meus olhos perseguiam-me também, aumentando minha pena sobre o passado? Ou todas as violetas eram azuis? Só sei dizer uma coisa filho: a liberdade está longe de ser azul. As flores me arrastavam de novo ao meu claustro. Mas quem sabe para enxergá-la de verdade essa dor seria o preço. E aí estaria o sentido dessa busca.
“Sim, o que deseja?” Interrompeu uma voz formal a minha deglutição indigesta. O que desejo? Nem eu mesmo sei dizer, mas urgente precisava de algumas palavras lógicas, práticas, e não de minhas digressões.
“Gostaria de falar com a sua patroa, Dona Simone. Somos velhos conhecidos. Não nos comunicamos há uns dez anos. Sou o Dr. Souza Schahin”. Formalizei ao máximo: uma dona, um título, e o sobrenome diferenciado depois do comum. Não poderia me escancarar logo de imediato. Precisava não estar em partes diante do risco de me desmanchar.
Olhou-me de cima a baixo para conferir alguns sinais de distinção. Consentiu com a cabeça, apesar de minhas noites mal dormidas não me darem total crédito. Deixou-me entrar e indicou um sofá na sala de estar. Seguiu para dentro da casa em busca da patroa. Pensei: o que algumas palavras e aparência não fazem? Se pudesse ver o meu currículo de vida pensaria duas vezes antes de me permitir qualquer coisa.
Verifiquei um pouco da casa. Fez-me voltar aonde nos demos a muitas intimidades e risadas, mas também onde senti uma grande tristeza, onde me olhei do espelho, e vi o que causava aos outros, ou melhor, às outras. Via na sala as mesmas flores que enchiam as paredes do quarto de outrora. O resto não me fitou. Marcavam as paredes, o sofá e as duas cadeiras. Só variavam de tons. E eram entornadas por um cinza..., quase azul. Um grande mar cinza azulado, onde se afogavam meus olhos. Perdiam-se entre as violetas. Será que era tudo aquilo uma grande armadilha, preparada por ela e por outras, mancomunadas, contra um grande canalha? É como se soubessem que um dia eu estaria ali.
Busquei olhar para as janelas. Eram várias, e com as venezianas todas abertas para a Serra, verde e compromissada com visões para além do que se via. Quem sabe elas atenuariam minha pena perante esta autoconfissão.
Sentei afundando-me sobre as flores do assento, em nada lembrando a postura que cabe a um advogado. Com os formalismos esquecidos de vez, quase mergulhei a cabeça entre os joelhos, aprofundando-me, quem sabe, sobre Deus. Conseguiria superar, assim, uma das marcas que minha mãe me deixou, citá-lo somente para a satisfação dos olhos alheios? Mas quem sai aos seus não degenera, não é assim?
“Quem ?” Surgiu rouco no ar, me tirando do oceano.
Capítulo IX
Desejos inquietos no porão
O som da cadeira de rodas sendo arrastada pelo assoalho foi brevemente substituído por um silêncio incômodo. A ausência das palavras era nossa primeira e sociável saudação, típica de íntimos desconhecidos que buscam se recompor entre as lembranças e o hiato deixado pelo tempo.
Quando me viu, Simone contorceu a cabeça e pediu gentilmente à moça mulata que lhe guiava para que nos deixasse às sós. Com um sorriso afável, a moça prontamente seguiu as ordens da patroa e abandonou a sala com rapidez. O som dos passos se desfez ligeiro dando lugar ao silêncio pesado que parecia decorar a sala. Eu, ainda afundado sobre as flores do assento, perdia-me entre pensamentos e mal conseguia concatenar as palavras. As frases se desmontavam antes mesmo de deixarem minha boca. Simone, da mesma forma, parecia não entender o que me trazia ali, depois de tantos anos, e, expressava com clareza confusão em seu olhar azul.
A minha presença, silenciosa e estranha, era para Simone um salto sobre lembranças que não queria ter. De um tempo igualmente silencioso, onde ideais foram substituídos por gritos agonizantes nos porões da Rua Tutóia. Foi ali a última vez em que Simone lembrou-se de ter pernas. Foi ali a última vez que Simone lembrou-se de ter sonhos. Nunca fora militante do movimento estudantil, mas carregava consigo a rebeldia livre de todos jovens. E por ser jovem e estudante, Simone pagou a dívida destinada aquela geração: o silêncio subversivo que amortizou por anos a memória morta de um país melhor.
Eu, que não tivera o mesmo destino dos porões, onde os estudantes ganhavam cicatrizes que para sempre foram escondidas, rememorava os olhos de Simone com saudade e ódio. Como podia ser ainda tão fascinante? Havia um excesso de força naquele olhar, que sempre me afrontava.
Simone então, com o olhar ainda aturdido, rompeu o ritmo atônito de nossos pensamentos e me perguntou o que fazia ali. Demorei alguns segundos para me recompor e disse a ela que não sabia ao certo. Talvez uma dúvida. O encontro aquele dia no Tribunal, onde não reconheci seu nome, mas sim seu olhar, trouxe-me uma lembrança incômoda dentro do peito. E respondi, sem muitas razões, que talvez fosse isso o que me trouxesse ali. Ela respondeu com rispidez, que se a visita era para fazer corte a pena ou dó que se tem de uma paraplégica, que poderia ir embora naquele instante. Tentei logo me desculpar, e disse obviamente que não estaria ali porque a via numa cadeira de rodas, mas sim, porque sentia saudades, de um tempo que nunca mais pareceu ser o mesmo.
Simone, ao piscar os olhos, baixou as defesas e concordou, um pouco emocionada, que tempos como aqueles não seriam mais os mesmos.
Ao ver Simone, vulnerável, me lembrei de como era quando menina. E como era linda. Eu rodava com meu dedo polegar a aliança na minha mão esquerda, enquanto todos os desejos, os mesmos desejos dos tempos que não voltavam, rodeavam sobre mim.
Capítulo X
O relato de Simone
Após um certo período de um silêncio constrangedor e bastante incômodo, Simone tirou aqueles grandes olhos azuis de mim e chamou pela simpática mulata. Pediu que lhe trouxesse uma xícara de chá. Me perguntou se eu desejava beber alguma coisa e optei por um café bem forte. Ao primeiro gole de seu chá, Simone desembestou a falar.
“Você não deve fazer idéia do que me aconteceu naquele dia do tumúlto, não é verdade?”, concordei com a cabeça e com certa dificuldade lhe disse que a ví numa maca e pensei que houvesse morrido.
“Não, só estava desacordada. Fui colocada na maca mas não me levaram para o hospital. Não, aquela ambulância não foi parar em um hospital, mas sim num tipo de ‘quartel general’ do DOPS. Fui levada pra lá e torturada sei lá por quanto tempo. Só me deram a liberdade quando eu já não podia mais andar. O que eles queriam comigo?” – pareceu que ela previu minha dúvida – “Você sabe. Eu conhecia muitos dos militantes dos movimentos contra a ditatura. Sabia muito sobre muitos deles. Sabe-se lá por que aqueles homens todos adoravam me contar detalhes dos planos para sabotar os militares e coisas do tipo. Eu não ligava muito pra isso. Ouvia sem prestar muita atenção. Mas de algum modo o DOPS sabia das minhas relações întimas com alguns dos líderes dos principais grupos rebeldes e com certeza passaram a me perseguir, espionar, ou sei lá. Naquele dia eu fui pega. Como já disse, me torturaram por dias. Dias que eu nunca vou saber quantos foram exatamente. E menos ainda eu posso contabilizar a dor e o sofrimento que passei naquele período que parecia durar a eternidade. Naquele dia entreguei muita gente, disse nomes, lugares, datas e dei os detalhes que eu me recordava sobre os planos secretos que tinha ouvido falar. Sempre que eu não sabia responder uma determinada pergunta, me batiam. E mesmo sabendo responder, também me batiam. Me batiam tanto que cheguei a desejar a morte por muitas vezes...”
Nesse momento, Simone interrompeu seu história. Uma lágrima correu em seu rosto. Mas, imaginavelmente, seu olhar penetrante e hipnótico mudou. Não era mais aquele olhar triste e cansado, ainda estonteante, de quando cheguei em sua casa, nem mesmo aquele olhar que eu conhecia dos tempos de jovem. Era muito próximo ao olhar de minha mãe quando ficava estava profundamente irritada e ferida. Um olhar maligno, mas ainda mágico.
“Naquele dia, dentre os principais nomes que o DOPS andava buscando, um deles era o seu, Dr. Souza Schahin.” – seu tom de voz nesse momento me deixou arrepiado – “Eles procuravam por você. Queriam saber tudo sobre você. Eu dizia a eles que não sabia nada, que só tinha te encontrado algumas vezes, que você não me contava nada sobre planos secretos e nomes de envolvidos. Eles não acreditaram. Me bateram muito enquanto repetiam seu nome, berrando pra que eu dissesse tudo o que sabia sobre você ou morreria. Eu tentava lembrar de qualquer coisa que você pudesse ter-me dito naqueles dias, mas não conseguia. Tentei inventar alguma informação sobre você, mas não funcionou. Tentei falar mais sobre os outros líderes militantes, mas também não adiantou. Era você que eles queriam, você era um dos grandes cabeças, eles diziam, você era o responsável por eu estar sofrendo tudo aquilo, eles diziam. Tudo culpa sua.”
Só me lembro de estar com a xícara de café próxima da boca sem ter tomado um gole sequer. Não sabia o que fazer ou dizer. Não me sentia exatamente culpado, mas essa história de dor e sofrimento me abalou muito. Mas não mais que a entonação da voz de Simone e de seu olhar voraz, que aprecia engolir meus pensamentos, me anulando qualquer ação. Foi somente quando aqueles olhos grandes e azuis deixaram de mirar-me fixamente que pude levar a xícara a uma mesa azul claro estampada com belas flores de diversos tipos. Talvez por nervosismo, ao colocar a xícara na mesa, derrubei-a e espalhou-se todo meu café, manchando a mesa e as flores. Pedi perdão insistentemente mas Simone não se comoveu. Pediu para que a bela mulata limpasse a mesa e me trouxesse outro café. Recusei. Disse que precisava ir embora.
“Certo. Vá.”, disse Simone secamente. “E não se precupe comigo, Dr. Souza Schahin, a Maria cuida muito bem de mim. Não me falta nada, como o senhor pode ver, tenho uma vida confortável e tranquila. E não se encomode em me visitar outras vezes, se eu precisar do senhor, te procurarei. Não foi nada difícil encontrá-lo no tribunal.”
Essas últimas palavras me congelaram ao mesmo tempo em que me fizeram correr até a porta, no momento seguinte, e sair dalí. O que ela queria dizer com aquilo? Então será que não fui eu que reecontrei Simone mas ela que me procrava? Por que haveria de me procurar já que ela mesma havia dito que não precisava de nada, não lhe faltava nada, que tinha uma vida confortável e tranquila?
Naquele noite quase não dormi. Sonhei com flores e mulheres querendo me dilacerar, sonhei com o DOPS me batendo enquanto Simone me olhava com aqueles últimos olhos que havia me deixado de lembrança. Ah! Aqueles olhos grandes e azuis! Nunca mais foram os mesmos, desde então.
(Mil perdões. Sem novas promessas.)
terça-feira, 31 de agosto de 2010
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