sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Décimo Primeiro Capítulo

(Conforme prometido, publico, dentro do prazo, mais um capitulo da "carta a Rubem", como já dito por alguns. Escrito pela Ludmila Carvalho, que botou na roda a Iza Bel, a próxima da lista. Deliciai-vos.)

Capítulo XI 

A última vez que vi o céu azul

Segurança, segurança, segurança… Aquele meu velho mantra ecoava em minha mente, e na manhã do dia seguinte, acordei decidido a voltar para casa, para os braços de sua mãe que eram, acima de tudo, o meu lar.

Foram tantos dias ausentes, tantas desculpas e tantos subterfúgios para manter-me ao encalço de Simone, que havia negligenciado minha família, minha vida bem sucedida, estável e sólida. Você, meu filho, estava prestes a vir apo mundo, e eu não estava participando desse percurso.

Depois daquela terrível realidade descortinada a mim por Simone e todo aquele mal-estar, depois daquela falsa sensação de culpa que surgia em forma do uma dor na boca do estômago como se houvesse recebido um golpe do Mike Tyson, meu senso prático me gritava para retomar a minha vida, esquecer aquele episódio e nunca mais voltar a pensar naqueles olhos azuis, que tanto contrastavam com aquelas mãos pequenas inertes sobre as coxas, com as palmas para cima.

A caminho de casa, observava um céu inesperadamente azul e sem nuvens que me trazia certa calma e a lembrança de uma distante Quaraí, e de uma infância em que tudo era mais fácil, mesmo para um filho sem pai.

Porém, não podia desviar o pensamento dos últimos eventos, e novamente me perguntava o que havia querido dizer Simone quando disse que me procuraria se precisasse?

Estaria ela tramando uma terrível vingança, juntamente com tantas outras garotas cujas inocências eu havia deflorado? Repassei mentalmente todos aqueles olhares, tantos nomes, tantos rostos…

Não somente isso, mas haveria ela se unido também outros tantos estudantes que por mim haviam sido motivados, mesmo sem grande convicção da minha parte, a participar do movimento estudantil e lutar contra a ditadura, e que sucumbiram como Simone, e sofreram graves punições que deixaram marcas em suas mentes, almas e principalmente, em seus corpos?

Repasso mentalmente outros rostos, outros nomes… Pessoas que nunca mais vi, que julgava não fazerem mais parte da minha história, de meu passado.

Haveria mais alguém desejoso de vingança? Pessoas que passei por cima em minha busca obstinada por ascensão social, talvez… Mais nomes, mais rostos.
Que sentido haveria em tudo isso? Perguntava a mim mesmo. Poderia ser real, ou estaria eu enlouquecendo?

Duvidando da minha própria sanidade, sentia minha cabeça rodando, e meus pensamentos a acompanhavam. Girando, girando, em torno de um único eixo: Simone.

Precisava voltar para casa, sentir que ainda tinha controle sobre minha vida. Precisava ver minha esposa, e relembrar porque ela havia sido o motivo de minha vida por tanto tempo. E principalmente, precisava ter notícias do meu filho.

O taxista para diante do endereço que lhe informara.

Pago a corrida, desço sem pressa, pego minha pouca bagagem. Respiro fundo. Embora em São Paulo, o ar me parecia o mais puro que teria respirado até então.

Minhas mãos tremem, suo frio repassando todas as desculpas, todas as histórias que havia inventado para contornar a situação e justificar minha ausência.

Meto a mão no bolso e retiro uma caixinha embrulhada em papel cintilante. Dentro dela uma pequena jóia que havia comprado no caminho, para sustentar minhas mentiras e tentar não afastar ainda mais sua mãe de mim, logo ela, que seria naquele momento, meu porto seguro.

Abro a porta. Luzes apagadas. Silêncio.

Encontro um bilhete sobre a mesa:

“Sei que esteve com outra mulher. Não me procure mais. Estarei fora do Brasil. O Dr. Almeida já tem a procuração para tratar do nosso divórcio. Adeus”

Desfaleço em uma poltrona.

A vingança de Simone começara.

 

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O Sapo


Um grupo de crianças. Uma tábua, um prego passado com a ponta pra fora. Um prego grande. Pilha de tábuas, molhadas por causa da chuva. Um sapo sobre uma tábua. Um menino com a camisa do Vasco da Gama ri muito enquanto coloca o prego cuidadosamente apoiado nas costas do sapo, com cuidado para não perfurá-lo. Não ainda. Por curiosidade ou covardia, outro menino apenas observa assustado, arrumando os óculos. O menino com a camisa do Vasco corre, gritando, pula com força pra cima, e numa precisão absurda pousa os dois pés sobre a tábua com o prego sobre o sapo.

Todos riem, mas é possível que nem todos estejam achando graça. Um sapo foi pregado. Só depois disso foi esmagado. Numa fração de segundo, o sapo foi uma espécie de jesus, pregado numa cruz de malta. Todos gritam. O pai do vascaíno é vascaíno. Ele não diz “vasco”, ele diz “vashco”. “Torço pro vashco”.  

O filho do vascaíno é vascaíno.


quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Tirinha



Tirado do site Malvados, de André Dahmer.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Oitavo, nono e décimo capítulos

(Mais uma vez este que vos mal escreve deu sinais de que estava próximo do chamamento blogal, deixando-vos assim a observar fragatas. Todavia, não foi por problemas técnicos, mas ausência de computador mesmo. Deve-se ao fato de que este autor estava em viagem importantíssima de cunho exclusivamente deleitoso no maravilhoso estado do Rio Grande do Norte, mais especificamente em Natal. De certa forma, como diria Chico - amigo meu, por isso chamo só de "Chico" - "se eu demorar uns meses, é bom, às vezes, você sofrer". Como voltei antes do período de um ano, continuaremos nossa saga, pedindo novamente as escusas a nossos digníssimos autores e excelentíssmos leitores. Isto posto, vamos aos capítulos em atraso: o oitavo (escrito pelo Benedito), o nono (escrito pela Helga Lützoff Bevilacqua) e o décimo (do Caio Miranda).

Capítulo VIII 

A Prisão Pintada de Azul 

Enquanto os minutos se engrandeciam na espera de alguém abrir a porta, meus olhos investigavam em volta e tentavam se perder da expectativa e da ansiedade que latejavam. Estavam para além do meu corpo. 

A varanda, ampla e florida, parecia contornar a casa toda, como condição de segurança à felicidade que aparentava, de proteção contra qualquer infortúnio . Poderia se dizer que eu seria um deles? Alguém a colocar em risco a tranqüilidade de suas flores multicoloridas? 

Violetas, muito mais as azuis, tornavam-me indiferente sobre as demais. Multiplicavam-se realmente ou   meus olhos perseguiam-me também,  aumentando minha pena sobre o passado? Ou todas as violetas eram azuis? Só sei dizer uma coisa filho: a liberdade está longe de ser azul. As flores me arrastavam de novo ao meu claustro. Mas quem sabe para enxergá-la de verdade essa dor seria o preço. E aí estaria o sentido dessa busca. 

“Sim, o que deseja?” Interrompeu uma voz formal a minha deglutição indigesta. O que desejo? Nem eu mesmo sei dizer, mas urgente precisava de algumas palavras lógicas, práticas, e não de minhas digressões. 

“Gostaria de falar com a sua patroa, Dona Simone. Somos velhos conhecidos. Não nos comunicamos há uns dez anos. Sou o Dr. Souza Schahin”.  Formalizei ao máximo:  uma dona, um título, e o sobrenome diferenciado depois do comum. Não poderia me escancarar logo de imediato. Precisava não estar em partes diante do risco de me desmanchar. 

Olhou-me de cima a baixo para conferir  alguns sinais de distinção. Consentiu com a cabeça,  apesar de minhas noites mal dormidas não me darem total crédito. Deixou-me entrar  e indicou um sofá na sala de estar.  Seguiu para dentro da casa em busca da patroa. Pensei: o que algumas palavras e aparência não fazem? Se pudesse ver o meu currículo de vida pensaria duas vezes antes de me  permitir qualquer coisa. 

Verifiquei um pouco da  casa. Fez-me voltar aonde nos demos a muitas intimidades e risadas, mas também onde senti uma grande tristeza, onde me olhei do espelho, e vi o que causava aos outros, ou melhor, às outras. Via na sala  as mesmas flores que enchiam as paredes do quarto de outrora. O resto não me fitou. Marcavam  as paredes, o sofá e as duas cadeiras. Só variavam de tons. E eram entornadas por um cinza..., quase azul. Um grande mar cinza azulado, onde se afogavam meus olhos. Perdiam-se entre as violetas. Será que era tudo aquilo uma grande armadilha, preparada por ela e por outras, mancomunadas, contra um grande canalha? É como se soubessem que um dia eu estaria ali. 

Busquei olhar para as janelas. Eram várias, e com as venezianas todas abertas para  a Serra, verde e compromissada com visões para além do que se via. Quem sabe elas atenuariam  minha pena perante esta autoconfissão.

Sentei afundando-me sobre as flores do assento, em nada lembrando a postura que cabe a um advogado. Com os formalismos esquecidos de vez, quase mergulhei a cabeça entre os joelhos, aprofundando-me, quem sabe, sobre Deus. Conseguiria superar, assim, uma das marcas que minha mãe me deixou, citá-lo somente para a satisfação dos olhos alheios?  Mas quem sai aos seus não degenera, não é assim? 

“Quem ?” Surgiu rouco no ar,  me tirando do oceano.


Capítulo IX 

Desejos inquietos no porão 

O som da cadeira de rodas sendo arrastada pelo assoalho foi brevemente substituído por um silêncio incômodo. A ausência das palavras era nossa primeira e sociável saudação, típica de íntimos desconhecidos que buscam se recompor entre as lembranças e o hiato deixado pelo tempo. 

Quando me viu, Simone contorceu a cabeça e pediu gentilmente à moça mulata que lhe guiava para que nos deixasse às sós. Com um sorriso afável, a moça prontamente seguiu as ordens da patroa e abandonou a sala com rapidez. O som dos passos se desfez ligeiro dando lugar ao silêncio pesado que parecia decorar a sala. Eu, ainda afundado sobre as flores do assento, perdia-me entre pensamentos e mal conseguia concatenar as palavras. As frases se desmontavam antes mesmo de deixarem minha boca. Simone, da mesma forma, parecia não entender o que me trazia ali, depois de tantos anos, e, expressava com clareza confusão em seu olhar azul. 

A minha presença, silenciosa e estranha, era para Simone um salto sobre lembranças que não queria ter. De um tempo igualmente silencioso, onde ideais foram substituídos por gritos agonizantes nos porões da Rua Tutóia. Foi ali a última vez em que Simone lembrou-se de ter pernas. Foi ali a última vez que Simone lembrou-se de ter sonhos. Nunca fora militante do movimento estudantil, mas carregava consigo a rebeldia livre de todos jovens. E por ser jovem e estudante, Simone pagou a dívida destinada aquela geração: o silêncio subversivo que amortizou por anos a memória morta de um país melhor. 

Eu, que não tivera o mesmo destino dos porões, onde os estudantes ganhavam cicatrizes que para sempre foram escondidas, rememorava os olhos de Simone com saudade e ódio. Como podia ser ainda tão fascinante? Havia um excesso de força naquele olhar, que sempre me afrontava. 

Simone então, com o olhar ainda aturdido, rompeu o ritmo atônito de nossos pensamentos e me perguntou o que fazia ali. Demorei alguns segundos para me recompor e disse a ela que não sabia ao certo. Talvez uma dúvida. O encontro aquele dia no Tribunal, onde não reconheci seu nome, mas sim seu olhar, trouxe-me uma lembrança incômoda dentro do peito. E respondi, sem muitas razões, que talvez fosse isso o que me trouxesse ali. Ela respondeu com rispidez, que se a visita era para fazer corte a pena ou dó que se tem de uma paraplégica, que poderia ir embora naquele instante. Tentei logo me desculpar, e disse obviamente que não estaria ali porque a via numa cadeira de rodas, mas sim, porque sentia saudades, de um tempo que nunca mais pareceu ser o mesmo. 

Simone, ao piscar os olhos, baixou as defesas e concordou, um pouco emocionada, que tempos como aqueles não seriam mais os mesmos. 

Ao ver Simone, vulnerável, me lembrei de como era quando menina. E como era linda. Eu rodava com meu dedo polegar a aliança na minha mão esquerda, enquanto todos os desejos, os mesmos desejos dos tempos que não voltavam, rodeavam sobre mim.



Capítulo X 

O relato de Simone 

Após um certo período de um silêncio constrangedor e bastante incômodo, Simone tirou aqueles grandes olhos azuis de mim e chamou pela simpática mulata. Pediu que lhe trouxesse uma xícara de chá. Me perguntou se eu desejava beber alguma coisa e optei por um café bem forte. Ao primeiro gole de seu chá, Simone desembestou a falar. 

“Você não deve fazer idéia do que me aconteceu naquele dia do tumúlto, não é verdade?”, concordei com a cabeça e com certa dificuldade lhe disse que a ví numa maca e pensei que houvesse morrido. 

“Não, só estava desacordada. Fui colocada na maca mas não me levaram para o hospital. Não, aquela ambulância não foi parar em um hospital, mas sim num tipo de ‘quartel general’ do DOPS. Fui levada pra lá e torturada sei lá por quanto tempo. Só me deram a liberdade quando eu já não podia mais andar. O que eles queriam comigo?” – pareceu que ela previu minha dúvida – “Você sabe. Eu conhecia muitos dos militantes dos movimentos contra a ditatura. Sabia muito sobre muitos deles. Sabe-se lá por que aqueles homens todos adoravam me contar detalhes dos planos para sabotar os militares e coisas do tipo. Eu não ligava muito pra isso. Ouvia sem prestar muita atenção. Mas de algum modo o DOPS sabia das minhas relações întimas com alguns dos líderes dos principais grupos rebeldes e com certeza passaram a me perseguir, espionar, ou sei lá. Naquele dia eu fui pega. Como já disse, me torturaram por dias. Dias que eu nunca vou saber quantos foram exatamente. E menos ainda eu posso contabilizar a dor e o sofrimento que passei naquele período que parecia durar a eternidade. Naquele dia entreguei muita gente, disse nomes, lugares, datas e dei os detalhes que eu me recordava sobre os planos secretos que tinha ouvido falar. Sempre que eu não sabia responder uma determinada pergunta, me batiam. E mesmo sabendo responder, também me batiam. Me batiam tanto que cheguei a desejar a morte por muitas vezes...” 

Nesse momento, Simone interrompeu seu história. Uma lágrima correu em seu rosto. Mas, imaginavelmente, seu olhar penetrante e hipnótico mudou. Não era mais aquele olhar triste e cansado, ainda estonteante, de quando cheguei em sua casa, nem mesmo aquele olhar que eu conhecia dos tempos de jovem. Era muito próximo ao olhar de minha mãe quando ficava estava profundamente irritada e ferida. Um olhar maligno, mas ainda mágico. 

“Naquele dia, dentre os principais nomes que o DOPS andava buscando, um deles era o seu, Dr. Souza Schahin.” – seu tom de voz nesse momento me deixou arrepiado – “Eles procuravam por você. Queriam saber tudo sobre você. Eu dizia a eles que não sabia nada, que só tinha te encontrado algumas vezes, que você não me contava nada sobre planos secretos e nomes de envolvidos. Eles não acreditaram. Me bateram muito enquanto repetiam seu nome, berrando pra que eu dissesse tudo o que sabia sobre você ou morreria. Eu tentava lembrar de qualquer coisa que você pudesse ter-me dito naqueles dias, mas não conseguia. Tentei inventar alguma informação sobre você, mas não funcionou. Tentei falar mais sobre os outros líderes militantes, mas também não adiantou. Era você que eles queriam, você era um dos grandes cabeças, eles diziam, você era o responsável por eu estar sofrendo tudo aquilo, eles diziam. Tudo culpa sua.” 

Só me lembro de estar com a xícara de café próxima da boca sem ter tomado um gole sequer. Não sabia o que fazer ou dizer. Não me sentia exatamente culpado, mas essa história de dor e sofrimento me abalou muito. Mas não mais que a entonação da voz de Simone e de seu olhar voraz, que aprecia engolir meus pensamentos, me anulando qualquer ação. Foi somente quando aqueles olhos grandes e azuis deixaram de mirar-me fixamente que pude levar a xícara a uma mesa azul claro estampada com belas flores de diversos tipos. Talvez por nervosismo, ao colocar a xícara na mesa, derrubei-a e espalhou-se todo meu café, manchando a mesa e as flores. Pedi perdão insistentemente mas Simone não se comoveu. Pediu para que a bela mulata limpasse a mesa e me trouxesse outro café. Recusei. Disse que precisava ir embora. 

“Certo. Vá.”, disse Simone secamente. “E não se precupe comigo, Dr. Souza Schahin, a Maria cuida muito bem de mim. Não me falta nada, como o senhor pode ver, tenho uma vida confortável e tranquila. E não se encomode em me visitar outras vezes, se eu precisar do senhor, te procurarei. Não foi nada difícil encontrá-lo no tribunal.” 

Essas últimas palavras me congelaram ao mesmo tempo em que me fizeram correr até a porta, no momento seguinte, e sair dalí. O que ela queria dizer com aquilo? Então será que não fui eu que reecontrei Simone mas ela que me procrava? Por que haveria de me procurar já que ela mesma havia dito que não precisava de nada, não lhe faltava nada, que tinha uma vida confortável e tranquila?

Naquele noite quase não dormi. Sonhei com flores e mulheres querendo me dilacerar, sonhei com o DOPS me batendo enquanto Simone me olhava com aqueles últimos olhos que havia me deixado de lembrança. Ah! Aqueles olhos grandes e azuis! Nunca mais foram os mesmos, desde então.

(Mil perdões. Sem novas promessas.)

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sétimo Capítulo

(Pedindo as desculpas a nossos fiéis leitores, trago a público o sétimo capítulo da saga novelística humildemente lançada pelo UPOP e feita com vossas contribuições pertinentes. O atraso se deveu a meu tratamento contra o câncer - o signo, não a doença. Ok, foi porque faltou tempo mesmo. Mas prometo - juro - que voltaremos à assiduidade típica de nosso pobre mas limpinho espaço internético.)

Capítulo VII

Após alguns dias de intenso trabalho, noites sem dormir, refeições feitas às pressas e imprensa no meu encalço, resolvi comemorar com minha equipe  mais uma vitória no tribunal em um bar qualquer dos Jardins. Comemorava não só aquela vitória, mas todo um período de prosperidade e ascensão profissional. Eu era o homem da vez, o advogado que todos queriam ver, ouvir e ter ao lado. Eu era um sucesso: invejado, respeitado, admirado por colegas, mestres e alunos.

Comemorando, entre ema bebida e outra, entre risos e tapinhas nas costas, disfarçava uma angústia crescente, um incomodo íntimo que me fazia sentir como se vestisse uma camisa três  números menores que o meu, como se as paredes ao meu redor estivessem se fechando. Esse incomodo, meu filho, vinha daqueles olhos que me olharam fixos durante o julgamento, que por um segundo pensei terem me reconhecido e que nesse segundo fez ressurgir todo meu passado.

Eu tentava. Tentava não pensar, não lembrar, mas ela estava ali e quanto mais bebia, mas eu a via, mas longe no tempo eu era levado. De repente voltar para casa, para os braços de sua mãe era a última coisa que eu queria fazer e naquela noite não o fiz.

Saí do bar e me perdi pelas ruas da cidade, dirigi durante horas, sem rumo em uma rota de fuga que não levava a lugar nenhum porque inútil fugir de mim mesmo e do meu passado. Parei quando não podia mais manter minhas mãos presas ao volante, quando meus olhos não mais podiam manter-se abertos e entrei numa padaria qualquer. Já amanhecia, a cidade acordava e o movimento no balcão era intenso. Pedi um café, minha cabeça girava, alucinado via em todos os rostos aqueles olhos azuis, profundos, grandes e tive certeza de que aquela mulher não me deixaria em paz. 

Eu precisava descobrir quem era ela, quem era a mulher em cadeira de rodas, pele e olhar fenecidos e mãos abandonadas, inertes nas coxas, mas que no entanto ainda erguia, altiva os mesmos olhos voluptuosos. Era preciso voltar ao inferno pelo tortuosos caminhos do paraíso.

Das semanas que se seguiram só me lembro do cheiro úmido do quarto de hotel, da minha cara amassada no espelho, dos telefonemas conformados de sua mãe, da busca frenética por pistas e rastros daquela mulher. Não me lembro do quanto gastei, das desculpas que dei para a ausência aos inúmeros compromissos. Era como se o mundo tivesse  parado até o momento em que finalmente estacionei o carro em frente aquela casa na Serra da Cantareira, toquei a campainha  e tudo começou a fazer sentido.


 (Tânia, muito obrigado. Benedito, o próximo: boa sorte.)



quarta-feira, 7 de julho de 2010

Sexto Capítulo

(Festejai, leitores. Chega a nossa redação o sexto capítulo da medioválgel saga novelística. O próximo capítulo, por indicação da Bruna Nehring, que nos brinda com a participação abaixo, será apresentado pela Tânia Tiburzio, que publica aqui. Ouçamos.)

Capítulo VI

Algemas

À minha volta, jovens estavam sendo domados a cacetadas, presos, imobilizados, levados para viaturas, algumas até sem identificação. Não hesitei, voltei a correr a esmo, para que ninguém me encontrasse, para que ninguém me colocasse perante a morte, o horror, o vazio. Pelas ruelas em que me meti, enquanto a fuga era mais cerebral do que física, espiava para encontrar uma farmácia, um mercado onde comprar um vidrinho de álcool, um esparadrapo que fosse, para estagnar o sangue que escorria da face para dentro da boca, e do queixo para o peito nu, como num cristo flagelado.

E se Simone também fizesse parte daquele caos...aqueles olhos lindos cabiam muito bem naquela confusão; aquela vida devassa a que seu espirito livre a levava, poderia sim pertencer àquele tumulto. Continuei correndo sem olhar para traz. De repente um edifício acabou o meu caminho. Sem portas, sem janelas, uma construção imensa, impessoal, sem identidade. Sentei no chão segurando minha cabeça entre os joelhos. Mesmo que quisesse fugir, às minhas costas estavam os três metros de altura de uma parede perfeitamente lisa. Hoje sei que aquele muro foi o impacto de que eu precisava: minha vida ainda era uma trilha, não um caminho.

Sentia-me irreconhecível. Mal refreava o soluço por alguém que ainda desejava com todo meu ser, que me havia levado à loucura, mas que agora jazia em algum lugar desconhecido, transformado num nada irrecuperável. Esforçava-me para identificar se aquela paixão pela qual ainda arquejava dolorosamente era realmente amor ou orgulho ferido. Havia sido tratado como uma refeição sem o requinte do paladar, assim como eu fizera com dezenas de garotas que eu sabia apaixonadas por mim. E agora, quem era este homem... não mais um rapaz, não mais o eterno estudante que vivia alegremente da gorda pensão de alguém que o aceitara como filho; e filho de uma mãe manipuladora com quem havia aprendido a fraudar a vulnerabilidade humana; eu era alguém que participava de protestos para um mundo de mais fraternidade, mais equidade, mais liberdade, mas sem muita convicção, da mesma forma inconsistente em que vivia meu dia a dia. Agora sentia-me foragido, perseguido; havia escapado das algemas do Doicoi, e agora era preciso desvencilhar-me das algemas familiares. Não mais manhas maternas: ela teria que aprender a respeitar-me - e quem sabe a amar-me - por aquilo que eu me tornaria. Ser sem dever.

Jamais havia olhado para o meu futuro, nem de relance. Quase formado ainda não havia-me perguntado como se começa a ser advogado...um estagio num escritório já estabelecido abriria o caminho ou é preciso começar como continuo? Mas é mesmo advogado que eu queria ser, ou um homem de negócios bem sucedido. A formação acadêmica ajudaria na hora das negociações, nas argumentações. Conseguir respeito é importante, não basta deixar as meninas de queixo caído esbanjando cultura, escalando classes sociais e prédios de luxo. Qualquer que viesse a ser minha profissão, era preciso credibilidade. E eu ali, num beco, de cócoras, sujo, ensanguentado, sem camisa. Há horas sem levantar, sem retornar às ruas, sem coragem para ver se o tumulto havia-se diluído, sem conseguir me recompor para atravessar a portaria a caminho de meu apartamento e desabar finalmente na cama.

Aquela noite, aquele lugar. Horas de angustia e ao mesmo tempo de abandono, incapaz de abraçar um recomeço decente. Sem saber ao certo onde me encontrava e ainda transtornado na dúvida se deveria voltar onde havia visto a maca com aquele corpo. Talvez fosse bom repassar por lá, reentrar naquela realidade: a morte da Simone estava quitando minha indecência, minha inconsistência, meus pecados. Aqueles olhos azuis estavam fechados para sempre, e para sempre meus dias sem rumo. No meu mundo, subitamente vazio, precisava traçar um começo novo, definido e definitivo. E aprender a livrar-me da perdição encontrada naquilo que parecera só um olhar irresistível; livrar-me daquele inferno que o destino havia colocado à minha espera numa tarde de abril; que havia-me atormentado de desejo e de ciumes durante tanto tempo...somente um par de olhos voluptuosos... Só alguns anos depois houve um dia em que os revi, aqueles olhos azuis.

Foi quando, no julgamento de peculato de um ministério qualquer, entrou uma testemunha chave: em cadeira de rodas, pele e olhar fenecidos, mãos abandonadas nas coxas, palmas para acima. Vi que o sobrenome não batia, mas os olhos estavam lá. E como naquela noite do corre corre no Largo de São Francisco, eu fingi que não vi, não notei, não reconheci. Naqueles dias de tribunal não quis investigar se poderia ser ela, se aquele corpo poderia ter sido salvo. Não queria alimentar o desejo de que ainda existisse um caminho que me levasse de volta ao paraíso, e me agarrava à esperança de poder fugir daquela visão que ainda me trazia o medo do inferno.

Sua mãe, meu querido, já era há alguns anos, a razão e a paz de minha vida e você, a caminho, minha serenidade. É muito importante meu filho que ao enfrentar o inesperado você aprenda a recorrer à sua memória: sofra desenterrando a dor e faça o balanço do seu eu atual. E seja severo consigo mesmo, seja firme em suas decisões e não enfraqueça.

Eu tentei.

(Bruna, muito obrigado. Tânia, boa sorte).

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Glória a Deus

Provavelmente quem acessa meu blog também acessa o Não Salvo, onde vi esse vídeo e resolvi repetir.


Um pastorzinho de merda que se aproveita de um público ignorante para ganhar dinheiro espalhar seu testemunho de fé. Esse tipo de vídeo faz com que cada dia mais eu sinta nojo de qualquer religião.


">


Interessante, claro, são os religiosos falando mal do pastor e citando para isso trechos da Briba, como esse:


Se lessem a biblia, nao pagariam este mico:
Levítico 
19:31 Não vos virareis para os adivinhadores e encantadores; não os busqueis, contaminando-vos com eles. Eu sou o SENHOR vosso Deus.