quarta-feira, 16 de junho de 2010

Terceiro Capítulo

(Que rufem os tambores! Eis que chega a nossa redação mais um capítulo quentíssimo do desafio literário do UPOP. Escrito pela Ana Marques, que nos indicou, para continuar a história, o Paulo Fodra. Delicie-se com mais estes momentos.)

Capítulo III

A Teia da Alma - inteligente, bandida, banida, além...

Todos os dias eu olhava para meu pai e desejava imitá-lo em tudo: queria seus óculos fundos e o raciocínio limpo, os livros nas mãos e a falta respeitável de cabelos. Eu o admirava e nutria por ele um amor que ele só sabia ter por minha mãe. Éramos um círculo de sombras, enquanto minha mãe isolava-se num sol que a nenhum de nós aquecia.

No entanto, por mais que eu seguisse o Pai, a vida havia me feito em instinto da Mãe. Ela sorria e era o meu sorriso. Eu planejava e desejava, e eram os desejos dela. Virava-lhe o rosto e ainda assim via-a em mim. Aceitei-a por falta de opção.

Nesse aceite comecei a aprender as manhas e andanças que pareciam pertencer a ela, mas que eram nossas. Tinha uma voz imponente com que regateava o mundo para si mesma e menos não aceitaria, nem eu. Um dia ouvi calorosa discussão entre ela e meu pai na qual, ao final, ganhamos a casa em que morávamos para o seu nome. Ela não aceitaria ser jogada de um lado para o outro: segurança, segurança e segurança.

Segurança tornou-se meu mantra. Embalado por esse som apliquei-me nos estudos, cogitei professores e lições extras que me tornariam alguém maior do que qualquer dos dois eram: inteligente tal meu pai, capaz como minha mãe. E livre, como nenhum deles era mais há muito.

Os conhecimentos abriram portas que eu desconhecia a existência. Lapidaram as palavras, construíram expressões, dissolveram a mediocridade que ainda havia em meus genes para que eu pudesse compreender o quanto eu poderia ir além da amena cidade na qual eu caminhava.

Eu já era adolescente quando ela resolveu que não eram suficientes as contas pagas e a casa nossa. Ela queria mais. Minha mãe era essencialmente carnívora e tudo que recobria meu pai a ela pertencia. Começou a propor e impor passeios nas tardes movimentadas de Santa Felicidade. Queria exibi-lo, braço dado ao dela, oficialmente pelas ruas. Eu nunca caminhava com eles, detestava aquela tortura dissimulada e o propósito férreo, apenas os observava de longe. A cada vez que eles saiam, meu pai quase molhava a roupa toda tal o suor que lhe brotava de todos lugares e ela sequer se embaraçava. Ela insistiu até que um dia o inevitável aconteceu e todos se encontraram: as famílias. Sem ofensas se olharam e reconheceram o talho incurável nas relações existentes. Num minuto o que era paralelo fundiu-se e explodiu sem que uma ruga se formasse. Separam-se e meus pais voltaram para casa.

Mal entrou em casa, meu pai arrumou todos as roupas e saiu. Provavelmente foi em busca daquele sentimento de 'ser livre' que tinha cantado em minha infância. Minha mãe sorria à porta pronta para retomar a rotina de orações até que ele voltasse. Claro que ele voltaria...

Me senti cansado daquilo. Vê-los lutar um com o outro, cada um a seu modo. Prestei vestibular para direito em São Paulo e aprovado preparei-me para ir embora de vez, o 'além' que eu buscava. Uma vez apenas eu perguntei a ela porque se rendia a tantas orações inúteis. Logo ela que jamais fora à igreja e que zombava de qualquer tentativa de abstinência que as pessoas queriam lhe propor. Ainda posso ouvi-la dizendo, entre risos e trejeitos, "é diversão, querido. Nada além do que preciso para passar o tempo."

O meu tempo ali estava esgotado. Foi a última vez que a vi, mas levei-a na alma em todos pecados que cometi.

(Ana Marques, muito obrigado. Paulo Fodra, boa sorte!)

2 comentários:

  1. Ana Marques

    MAGNÍFICO!!!!!!!!!!!!!!!!!!
    PARABÉNS!!!!!!!!!!!!!!!

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  2. Ana, fiquei muito feliz por você ter aceito! Sobre seu texto, a alma... já te disse... muito, muito bom!
    E sua indicação foi perfeita: o Paulo vai arrasar, tenho certeza!

    Sandi, espero que esteja gostando do resultado!

    Beijo a todos

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