quarta-feira, 7 de julho de 2010

Sexto Capítulo

(Festejai, leitores. Chega a nossa redação o sexto capítulo da medioválgel saga novelística. O próximo capítulo, por indicação da Bruna Nehring, que nos brinda com a participação abaixo, será apresentado pela Tânia Tiburzio, que publica aqui. Ouçamos.)

Capítulo VI

Algemas

À minha volta, jovens estavam sendo domados a cacetadas, presos, imobilizados, levados para viaturas, algumas até sem identificação. Não hesitei, voltei a correr a esmo, para que ninguém me encontrasse, para que ninguém me colocasse perante a morte, o horror, o vazio. Pelas ruelas em que me meti, enquanto a fuga era mais cerebral do que física, espiava para encontrar uma farmácia, um mercado onde comprar um vidrinho de álcool, um esparadrapo que fosse, para estagnar o sangue que escorria da face para dentro da boca, e do queixo para o peito nu, como num cristo flagelado.

E se Simone também fizesse parte daquele caos...aqueles olhos lindos cabiam muito bem naquela confusão; aquela vida devassa a que seu espirito livre a levava, poderia sim pertencer àquele tumulto. Continuei correndo sem olhar para traz. De repente um edifício acabou o meu caminho. Sem portas, sem janelas, uma construção imensa, impessoal, sem identidade. Sentei no chão segurando minha cabeça entre os joelhos. Mesmo que quisesse fugir, às minhas costas estavam os três metros de altura de uma parede perfeitamente lisa. Hoje sei que aquele muro foi o impacto de que eu precisava: minha vida ainda era uma trilha, não um caminho.

Sentia-me irreconhecível. Mal refreava o soluço por alguém que ainda desejava com todo meu ser, que me havia levado à loucura, mas que agora jazia em algum lugar desconhecido, transformado num nada irrecuperável. Esforçava-me para identificar se aquela paixão pela qual ainda arquejava dolorosamente era realmente amor ou orgulho ferido. Havia sido tratado como uma refeição sem o requinte do paladar, assim como eu fizera com dezenas de garotas que eu sabia apaixonadas por mim. E agora, quem era este homem... não mais um rapaz, não mais o eterno estudante que vivia alegremente da gorda pensão de alguém que o aceitara como filho; e filho de uma mãe manipuladora com quem havia aprendido a fraudar a vulnerabilidade humana; eu era alguém que participava de protestos para um mundo de mais fraternidade, mais equidade, mais liberdade, mas sem muita convicção, da mesma forma inconsistente em que vivia meu dia a dia. Agora sentia-me foragido, perseguido; havia escapado das algemas do Doicoi, e agora era preciso desvencilhar-me das algemas familiares. Não mais manhas maternas: ela teria que aprender a respeitar-me - e quem sabe a amar-me - por aquilo que eu me tornaria. Ser sem dever.

Jamais havia olhado para o meu futuro, nem de relance. Quase formado ainda não havia-me perguntado como se começa a ser advogado...um estagio num escritório já estabelecido abriria o caminho ou é preciso começar como continuo? Mas é mesmo advogado que eu queria ser, ou um homem de negócios bem sucedido. A formação acadêmica ajudaria na hora das negociações, nas argumentações. Conseguir respeito é importante, não basta deixar as meninas de queixo caído esbanjando cultura, escalando classes sociais e prédios de luxo. Qualquer que viesse a ser minha profissão, era preciso credibilidade. E eu ali, num beco, de cócoras, sujo, ensanguentado, sem camisa. Há horas sem levantar, sem retornar às ruas, sem coragem para ver se o tumulto havia-se diluído, sem conseguir me recompor para atravessar a portaria a caminho de meu apartamento e desabar finalmente na cama.

Aquela noite, aquele lugar. Horas de angustia e ao mesmo tempo de abandono, incapaz de abraçar um recomeço decente. Sem saber ao certo onde me encontrava e ainda transtornado na dúvida se deveria voltar onde havia visto a maca com aquele corpo. Talvez fosse bom repassar por lá, reentrar naquela realidade: a morte da Simone estava quitando minha indecência, minha inconsistência, meus pecados. Aqueles olhos azuis estavam fechados para sempre, e para sempre meus dias sem rumo. No meu mundo, subitamente vazio, precisava traçar um começo novo, definido e definitivo. E aprender a livrar-me da perdição encontrada naquilo que parecera só um olhar irresistível; livrar-me daquele inferno que o destino havia colocado à minha espera numa tarde de abril; que havia-me atormentado de desejo e de ciumes durante tanto tempo...somente um par de olhos voluptuosos... Só alguns anos depois houve um dia em que os revi, aqueles olhos azuis.

Foi quando, no julgamento de peculato de um ministério qualquer, entrou uma testemunha chave: em cadeira de rodas, pele e olhar fenecidos, mãos abandonadas nas coxas, palmas para acima. Vi que o sobrenome não batia, mas os olhos estavam lá. E como naquela noite do corre corre no Largo de São Francisco, eu fingi que não vi, não notei, não reconheci. Naqueles dias de tribunal não quis investigar se poderia ser ela, se aquele corpo poderia ter sido salvo. Não queria alimentar o desejo de que ainda existisse um caminho que me levasse de volta ao paraíso, e me agarrava à esperança de poder fugir daquela visão que ainda me trazia o medo do inferno.

Sua mãe, meu querido, já era há alguns anos, a razão e a paz de minha vida e você, a caminho, minha serenidade. É muito importante meu filho que ao enfrentar o inesperado você aprenda a recorrer à sua memória: sofra desenterrando a dor e faça o balanço do seu eu atual. E seja severo consigo mesmo, seja firme em suas decisões e não enfraqueça.

Eu tentei.

(Bruna, muito obrigado. Tânia, boa sorte).

Um comentário:

  1. Bruna,

    Delicioso texto!
    Só você para escrever tanto em tão poucas linhas! Só você para delinear tão bem os conflitos existenciais do nosso (anti)herói!

    Beijos,

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